sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

# 462















Isto não é um Filme (2011) é um objecto que se resolve maravilhosamente na contradição entre duas propostas, uma que dissesse que o cinema é aquilo que acontece enquanto se espera, com a câmara ligada, que o cinema tenha lugar; outra que afirmasse que o cinema é a linguagem que convoca e conjuga elementos como cenário, actores e acção, que pressupõe uma liberdade de expressão que traduzirá do modo mais fiel possível as intenções do realizador.















Este projecto clandestino de Jafar Panahi resulta da interdição que lhe foi imposta pelas autoridades iranianas, de filmar ou escrever argumentos para cinema pelo período de 20 anos, e da sua situação de prisão domiciliária aguardando julgamento que poderia condená-lo até 6 anos de cárcere. Panahi procurou chamar a atenção dos públicos de fora do seu país para as restrições a que estava e que continua sujeito, realizando um filme ao mesmo tempo triste e jubilatório (no que é nova contradição). Isto não é um Filme nunca corresponderá enquanto filme ao tipo de cinema praticado anteriormente por Jafar Panahi, e conserva do projecto abortado em processo de filmagem (a história que Panahi relata a partir do argumento e que reconstitui nas limitações de sua casa, tendo por único colaborador o operador de câmara e amigo Mojtaba Mirtahmasb), mas a partir do momento em que a câmara está ligada, de início num plano só na aparência fortuito do quarto vazio da casa de Panahi, o cinema pode e veio a acontecer, naquela fronteira entre o que é real e o que é ficção que tanto menos distinta maior fascínio exerce sobre nós. Por exemplo, na cena final quando Panahi entra no elevador acompanhando com a sua câmara o rapaz que recolhe o lixo do prédio, é real o que vemos ou encenação? O filme deixa-nos com essa maravilhosa interrogação...















Entre as quatro paredes do domicílio dos Panahi, onde naquele dia dos habituais moradores apenas se encontram Jafar e a iguana que pertence à sua filha – ausente com a mãe para assistirem às comemorações da chegada de um novo ano –, o bicho percorre ociosamente os espaços da casa, espécie de espectador participativo em termos de acção, mas ao contrário de nós totalmente alheado das profundas implicações deste "não-filme". Isto não é um Filme acaba por dar conta daquilo que resiste na liberdade mais intrínseca à criação. Do autor enquanto medida de todo o seu trabalho. Do homem tão mais universal quanto se encontre privado do valor da liberdade que todos prezamos acima de qualquer outro. Da absoluta liberdade (outra, decorrente daquela), última e mais importante contradição, de um cinema que não se deixa aprisionar pelas condicionantes de produção: aquilo que o espaço físico limita, o pensamento e a imaginação vêm completar. "Isto" vem a ser um filme e um filme muito particular, ao vencer os constrangimentos que foram impostos à sua condição primeira. Onde existir a voz de Panahi a imagem segui-la-á.

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