sexta-feira, 28 de junho de 2013
# 269
"O melhor programa da crítica, em termos simples, está num filme de Hitchcock: Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954). James Stewart passa a vida com os binóculos a olhar para as janelas. Há uma cena em que entra a Grace Kelly, ele passa-lhe os binóculos e diz-lhe assim: 'diz-me o que vês e o que pensas que significa'. Esta frase do James Stewart é o que deve ser o programa de um crítico de cinema."
quinta-feira, 27 de junho de 2013
quarta-feira, 26 de junho de 2013
terça-feira, 25 de junho de 2013
segunda-feira, 24 de junho de 2013
# 264
Enche-me de satisfação que Jeff Tweedy se dirija à plateia do histórico Ryman Auditorium de Nashville dizendo que caso aquele venha a ser um dos grandes concertos rock de sempre quer que se saiba que ele precisou de ser injectado com esteróides para tratar as muito esforçadas cordas vocais. Porque os Wilco são tão humanos e tão bons quanto isso.
sexta-feira, 21 de junho de 2013
# 263
I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943) é título que peca por escassez. Todos os elementos da família Rand Holland, responsável pela colonização da ilha de San Sebastian com escravos, são zombies. A vida deles ficou como que suspensa a partir do momento em que Jessica, mulher do meio-irmão mais velho, Tom, entrou num estado catatónico, diz-se, em resultado de uma uma febre tropical muito forte. Só que a única doença deste filme é o amor. O amor que "mata" e o amor que não oferece garantias de cura. Como estão todos "mortos", ou mortos-vivos, descrentes, cínicos, derrotados, quando a enfermeira Betsy chega de longa viagem, proveniente do Canadá, para cuidar da moribunda, só dela pode vir agora o amor. É isto que a faz tentar devolver à vida a mulher daquele por quem Betsy se irá apaixonar, supremo sacrifício de um coração puro e destemido. Betsy é a escolhida: pelo bebé de uma das empregadas nativas da casa de Paul, que sorri para ela; pelo negro gigante, em transe, que serve de porteiro que dá ou nega acesso às cerimónias voodoo, e que a deixa passar levando Jessica pela mão mesmo tendo Betsy perdido o lenço negro preso à lapela que funciona ali como salvo-conduto; ela é a escolhida não para resgatar o destino da família mas para precipitar os acontecimentos que implicam a salvação de uns pelo sacrifício de outros: aqueles para quem neste filme de um romantismo levado ao extremo a felicidade só pode ser alcançada para lá da vida. Como Tom comenta com Betsy quando a questiona sobre se ela se considera uma mulher bonita, o amor por uma mulher bela só traz complicações a ela e infelicidade a quem lhe sucumba aos encantos. Assim os outrora amantes adúlteros, Jessica mulher de Paul e o meio-irmão mais novo deste, Wesley, serão por Wesley sacrificados ao mar, naquilo que pode ser visto como uma salvação pela morte para que outros se salvem em vida. I Walked With a Zombie ou Tourneur a filmar em gótico a "tropical malady".
(visto na Cinemateca)
quinta-feira, 20 de junho de 2013
# 260
Sei o quanto são genuínos o carinho e a admiração que Catarina Ruivo nutria por Pedro Hestnes que salvo falha da minha memória esteve para ser protagonista do primeiro filme dela, uma curta-metragem da Escola de Cinema, baseada na figura de Corto Maltese, papel que acabou sendo interpretado por Nuno Melo. Hestnes é também presença que guarda a memória de um período do cinema português marcado pelo surgimento de nomes como Manuel Mozos e Pedro Costa, tendo trabalhado ainda com João Botelho e não só, chegou a entrar em produções estrangeiras também. Não é possível ver Em Segunda Mão sem o sentimento de nos estarmos a despedir de Pedro Hestnes (e por inerência de uma parte do nosso passado), que veio a falecer já depois da produção estar concluída. Este projecto de Catarina Ruivo seria especial de qualquer maneira, e no primeiro terço da sua duração, quando a figura de Hestnes se mostra andrajosa e frágil, e mais ainda de uma fragilidade que assenta na própria debilidade física que é vísivel no homem independentemente da personagem, sentimo-nos próximos do filme e dispostos a aceitá-lo nas suas condições. Há depois um corte abrupto, da noite para o dia, de um interior esquálido para uma praia deserta batida pelo mar de Inverno, a possibilidade de uma outra vida, de uma vida "em segunda mão", que o filme de Catarina Ruivo parece sugerir poder tratar-se de um delírio do escritor moribundo vivido por Pedro Hestnes. Lamento que o filme se esboroe a partir daqui, não acreditando talvez que podia seguir pelo sonho, terminar deixando-nos suspensos nessa dúvida, optando por um registo realista ao qual não oferece consistência dramatúrgica suficiente. É como se uma lógica de filme se sobrepusesse à lógica da personagem, que seria mais romântica e necessariamente onírica. Eu estava a ver um filme passado na cabeça de Jorge (Hestnes) e ao mesmo tempo a ser incomodado por outros elementos que faziam parte da nova história de cara lavada. Saí de cara à banda.
(visto na antestreia)
quarta-feira, 19 de junho de 2013
# 259
Francisco Buarque de Hollanda, que hoje faz 69 anos, foi casado com a actriz Marieta Severo, entre 1966 e 1999. São muitos seis e muitos noves.
terça-feira, 18 de junho de 2013
# 256
Toda a gente sabe que embora se tratando de uma obra de ficção, Caçador Branco, Coração Negro (1990) é mais que apenas inspirado na figura do realizador John Huston (1906-1987) e na rodagem de A Raínha Africana (1951), filme que juntou Katherine Hepburn e Humphrey Bogart.
Mas se Huston é o arquétipo do projecto, a alma talvez esteja com John Ford (1894-1973) e mais em concreto com uma das suas obras-primas, O Homem que Matou Liberty Valance (1962). Lembrei-me muito de Ford no momento em que John Wilson (Clint Eastwood, realizador do filme e realizador no filme) prestes a iniciar a rodagem, é desviado para uma última caçada, na tentativa de abater o poderoso elefante que ele tanto perseguira. É claro que o elefante simboliza no filme de Eastwood um desafio, um reduto de heroismo de natureza lendária que alimentou a ficção de aventuras, quer sob a forma de literatura ou cinema. O homem a medir a sua valentia com um animal cuja existência se confunde com a idade e a grandeza do continente que ambos habitam. E tal como John Ford havia feito, Eastwood opta por dar conta dos factos, apesar de neste caso se parodiar o mito.
A caçada corre mal, Wilson, num primeiro momento, influenciado pela opinião dos seus companheiros, hesita em atirar sobre o animal, que carregará sobre o guia africano que se lhe atravessa à frente matando-o. Não se abateu o elefante, mas fez-se o filme (o de Huston, mas também o de Eastwood). Isto ficará de fora de Caçador Branco, Coração Negro, que termina quando Wilson dá voz de "acção" na rodagem do primeiro plano (de A Raínha Africana). Instantes antes tinham-se ouvido os tambores tribais que davam conta da morte de Kivu, o guia africano. O que exclamavam os tambores, repetidas vezes, era "caçador branco, coração negro". A glória perseguida pelo homem branco, a superação que permitiria ascender ao estatuto de lenda, era anúncio de morte, e ali, de novo, a violação de uma ordem anteriormente instituída.
segunda-feira, 17 de junho de 2013
# 255
Nemesis, anunciado por Philip Roth como sendo o seu derradeiro livro, é constituído por 3 capítulos: o primeiro, Equatorial Newark, tem 140 páginas; o segundo, Indian Hills, cerca de 100; e o último, Reunion, pouco mais de 40. Na página 154 fiz o meu primeiro sublinhado, sob a frase “He was struck by how lives diverge and by how powerless each of us is up against the force of circumstance.” Ele é Bucky Cantor, protagonista desta história situada próximo do final da Segunda Grande Guerra, um rapaz de vinte e poucos anos, olhado com admiração pelos seus alunos de educação física, pelas suas capacidades atléticas, que só a escassez de visão, que explica os óculos grossos que usa, justifica que não o tenham enviado para combater os alemães ou japoneses. Bucky carrega a culpa de não ter sido alistado, junto com a de ter perdido a mãe no parto, mais a do pai ter sido afastado pelo avô materno por se tratar de um burlão e um patife, e em cima de todas estas culpas cai um surto violento de poliomielite que trará consequências devastadoras para a sua vida. É que a voz de Nemesis, que eu desconhecia que se traduz por “castigo merecido”, não vem de Bucky mas de outra personagem, uma das crianças, quando adulta, que fazia parte do grupo de miúdos de quem Bucky se ocupava nas férias de Verão, ano de 1944, com práticas desportivas. O reencontro entre Bucky Cantor e Arnold Mesnikoff dá-se em 1971, sendo que Arnold, apesar de muito incapacitado pela mesma doença, conseguira refazer a sua vida, casara, tivera filhos, e dedicara-se à arquitectura no ramo das acessibilidades, ao passo que Bucky se escondera da vida, ressentido com o que lhe acontecera e aos outros à sua volta, que destruira a idealização do que para ele um homem devia ser: o homem a quem a namorada de Bucky, Marcia, escrevera certo dia numa carta, repetidas 218 vezes, as palavras “my man”.
Bucky deixara de corresponder aos seus olhos a esse mesmo homem, fisicamente e por consequência moralmente indestrutível, quando a poliomielite o deixou com as pernas sustentadas por próteses metálicas, junto com um dos braços praticamente sem vida. Desistiu de Marcia, escondeu-se de todos, passando a viver sozinho, após a morte da avó, num quase total anonimato. A história de Nemesis corresponde à história de Bucky Cantor contada a, e por, Arnold Mesnikoff. A voz de Philip Roth projecta-se em Arnold e a questão filosófica central a Nemesis volta a ser explicitada na página 242, quando se lê “Sometimes you’re lucky and sometimes you’re not. Any biography is chance, and, beginning at conception, chance – the tyranny of contingency – is everything.” Bucky responsabiliza Deus, e faz de si próprio bode expiatório pelo rumo que a sua vida tomou. É mais uma vítima das prerrogativas a que deve o homem corresponder, presentes e problematizadas ao longo de toda a obra de Philip Roth. Um modelo de masculinidade universal que quando investido com cegueira resulta em auto-condenação e até tragédia pessoal.
Philip Roth pode ter parado de escrever, o que não impede que os conflitos interiores dos seus “heróis” continuem a reproduzir-se nas vidas de todos os dias. Os homens continuam a ser como são até que a tradição que herdamos deixe de ser o que sempre foi.
sexta-feira, 14 de junho de 2013
quinta-feira, 13 de junho de 2013
# 251
É preciso começar por olhar o todo em vez de matar a cabeça a analisar cada situação que compõe a estranheza de Dillinger Morreu (1969). Estou a falar para mim, sobretudo. Dillinger Morreu é no essencial sobre mais uma noite como tantas outras. O filme de Ferreri carrega marcas estéticas do seu tempo: parece uma obra de Godard, da fase Pedro o Louco (65), cruzada com o Antonioni do Deserto Vermelho (64). É por isso um objecto esteticamente datado. Sugando-lhe o aspecto visual até que não fique outra coisa que o esqueleto da narrativa, um esqueleto de banalidade, o filme comunica de forma simples, directa e íntima com o espectador, que é hoje o mesmo homem ou mulher (primeiramente o homem) a quem Ferreri se dirigia. Voltado para dentro de si mesmo, porque o mundo não lhe oferece mais um modo de vida, uma forma de comunicar ou ter prazer, o homem deambula por memórias e fetiches, e acaba fugindo para o interior da sua imaginação: único espaço possível de liberdade. É preciso voltar a Dillinger Morreu. Só se não me esquecer dele.
quarta-feira, 12 de junho de 2013
terça-feira, 11 de junho de 2013
# 246
"By the end of the day at the waterfront he thought, exactly as he had when he began at Panzer, that there could be no more satisfying job for a man than giving a boy learning a sport, along with the basic instruction, the security and confidence that all will be well and getting him over the fear of a new experience, whether it was in swimming or boxing or baseball."
sexta-feira, 7 de junho de 2013
quinta-feira, 6 de junho de 2013
# 241
Mas também existe a versão oficial: "The inspiration for …Like Clockwork was pulled largely from frontman Josh Homme’s near death experience during a medical procedure and the unraveling of his life around it. The album and the fan support surrounding it is quite literally a rebirth—a dark rebirth, but one just the same."
# 240
A contradição existe mas só na aparência é irresolúvel. O homem persegue a eternidade do instante (dispenso-me de explicar o que isto quer dizer), ao passo que o vampiro vive subjugado à sensação da eternidade a cada instante. A eternidade perseguida ou imposta é de igual modo uma condenação. Isto faz da figura do vampiro um modelo do individualismo que continua tão fascinante hoje como sempre foi. A fixação solipsista, a aura romântica dos que vivem contra o sentido dos ponteiros do relógio, como se os instantes de eternidade ilusória pudessem imprimir um significado que durasse para sempre. Esta ou outra qualquer versão de romantismo é o que existe de novo na música dos Queens of the Stone Age, no que musicalmente se traduz em ambientes sombrios e num sinfonismo de matriz pop-rock. A parte mais substancial liga-se ainda ao som dos QOTSA de sempre: guitarras saturadas e ritmos lascivos mas fica a sensação de que o grito deixou de ser do grupo para passar a dar voz de um só homem. Josh Homme assume esse protagonismo e não é a mais extensa lista de participações que um disco dos QOTSA alguma vez teve que garante o contrário. Acho mesmo que sendo ele o elemento comum à coesão dos contributos dispersos, isso reforça a personalidade do disco enquanto personalidade de um. Uma versão mitificada de Josh Homme pelo próprio. Disco assombroso.
quarta-feira, 5 de junho de 2013
# 238
À Procura de Sugar Man narra a história de um fenómeno e é redutor vê-lo como tentativa de reparar uma injustiça. Sixto Rodríguez gravou dois discos no período mais rico da música popular, compreendido entre o final da década de 60 e o começo da década seguinte, numa editora secundária, os discos pouco ou nada venderam, a editora A&M Sussex largou-o, e Rodríguez fez-se à vida, na construção civil, e teve filhas. 40 anos volvidos sobre as obscuras gravações, em particular o álbum Cold Fact (1970), continuava a viver na casa onde viveu sempre, modestamente. O fenómeno tem então origem na Cidade do Cabo, onde por efeito viral e em pleno clima de apartheid, Sixto Rodríguez, ou Jesus Rodríguez, ou apenas Rodríguez, se tornou involuntário símbolo da contestação ao regime sul-africano, tendo vendido desse disco de estreia cerca de meio milhão de cópias (num país com 40 milhões de habitantes). A busca por este homem é ali que tem início, no continente africano, no contágio que passa de um melómano que trabalha numa joalharia e mais tarde abrirá uma loja de discos, para um jornalista musical que a ele se alia e que tempos depois irá ao encontro de Rodríguez onde Rodríguez nunca deixou de estar, na cidade americana de Detroit. Para estes dois sul-africanos Sixto Rodríguez era um mito por identificar, alguém que chegaram a acreditar ter posto termo à vida em cima do palco (as versões variam, da imolação ao disparo de pistola). A “ressurreição” de Rodríguez veio a ter apoteótica celebração na Cidade do Cabo, onde várias multidões esgotaram seis noites de concerto, e a história do fenómeno terminaria aqui não fosse a produção deste filme, coroado com o Oscar de Melhor Documentário em Fevereiro passado.
Foi inteligente da parte do realizador sueco Malik Bendjelloul ir dando a conhecer a música de Rodríguez à medida que o filme avança, e a imagem actual do músico só é revelada a meio da viagem. Assim diminui-se a possível valorização excessiva da sua curta obra em função do carácter extraordinário da história de vida. A vida é mais extraordinária que a obra, diga-se em abono da justiça, e a modéstia do homem mais extraordinária ainda. Pelo menos é o que o filme permite concluir a partir do que vemos e ouvimos. Um talento que se apagou em função dos factos, nada sabendo de que noutro ponto do globo uma segunda vida decorria independente da sua vontade. Quando as duas vidas coincidiram, por intervenção de outros, Sixto Rodríguez reagiu com a naturalidade de alguém que lá sempre tivesse estado, ou então alguém para quem a recuperação dessa mesma sensação fosse o suficiente. Aquele que nada deseja para si é o único capaz de aceitar tudo o que vier pela frente. Somos muito diferentes de Rodríguez na medida em que a sua história nos parece exemplar, próximo do inacreditável. Para ele limitou-se a ser mais um facto consumado. Rodríguez está fora deste mundo. Ele não regressou de parte alguma, limitou-se a retribuir a gentileza de o terem procurado.
(visto na antestreia)
terça-feira, 4 de junho de 2013
# 237
Entro em casa, tiro os sapatos, sento-me a pensar no porquê dos filmes de Hong Sang-soo, e em particular Noutro País, que acabara de ver, serem tão especiais e de tão simples aparência. Vamos aos elementos fixos de Noutro País. Uma francesa, Anne, sempre interpretada por Isabelle Huppert, chega a uma pequena vila costeira da Coreia do Sul, aloja-se - nas três histórias que compõem os filmes dentro do filme - na mesma residencial, passeia junto a uma praia quase deserta em busca do farol de que ouvira falar, encontra um jovem local, alto e espadaúdo, que durante o dia trabalha como salva-vidas (de quem? se a praia está vazia e o tempo tão pouco convidativo a dar um mergulho...) e de noite dá apoio ao grelhador num restaurante, assumindo diferentes identidades (ou é realizadora, ou antropóloga recém-divorciada, ou ainda uma mulher que vem ao encontro do amante, que responde pelo mesmo nome do autor do filme, "soo") e comportamentos ligeiramente diferentes, oscilando o jogo amoroso entre as figuras masculinas previsíveis e a figura do jovem desconhecido, no que é mais um flirt da protagonista por via do realizador Hong Sang-soo com as possibilidades ficcionais.
E depois, para desdobrar os sucessivos desdobramentos há sempre um momento em que a mulher adormece e que a história daquele episódio é retomada do ponto anterior, como se se apagasse o que veio depois. Como se tivesse sido apenas um sonho daquela mulher. Penso precisamente que é esta zona sonhada, com uma simplicidade de processos e sem quaisquer alaridos oníricos, marcada sim por uma ingenuidade de convenção (são as regras do jogo de Sang-soo) reforçada pelas barreiras comunicacionais (sendo o inglês a língua franca quando se sonha sem fronteiras) que interessa ao coreano. Noutro País é um anti-filme de estrela, e a leveza de Isabelle Huppert coloca-a no mesmo plano das outras personagens. A dada altura, na última das três histórias, há uma conversa entre Anne, a sua orientadora coreana de antropologia, e um monge budista conhecido desta. Anne procura provocar o homem com questões sobre o amor e o sexo, e as respostas do monge dirigem-se para aquilo que os interesses de Anne podem revelar da sua pessoa. Aplicado ao filme e num âmbito mais geral a todas as ficções, e até mesmo aos sonhos, que só em curta medida são histórias movidas por um mecanismo involuntário, o que mais interessa é o que podem revelar de quem as criou. Os temas recorrentes, situações comuns, variações que se repetem. Uma mulher, um homem, e se, e se, e se. Os filmes de Hong Sang-soo criam assim este território leve como o sonho, assente em pilares realistas, são lúdicos e joviais, e fazem dos amores brincadeiras quase sem culpa, e prinicipalmente sem consequências. Noutro País faz tudo isto em toada de câmara (o número de personagens conta-se pelos dedos de uma só mão), junto do mar, e é uma miniatura graciosa de se ver.
segunda-feira, 3 de junho de 2013
# 236
"«A tristeza também é um vício, uma conchinha apetitosa, cheia de ecos. Podemos sentir-nos mais relacionados com o estranho infinito, parecido com as palavras expansivas dos nossos poetas de adoração, e relacionarmo-nos mais com o universo do que com as pessoas», observa o músico. «Mas agora quero viver com pessoas - é o único sítio onde existo, dentro das pessoas.»"
Em Roma sê humano.
Em Roma sê humano.
# 235
O Passado e o Presente (1972) é um filme terrível pelo modo como encena o nojo ao matrimónio - é marcha nupcial para o cadafalso, onde não falta o sublinhado da partitura de Mendelssohn -, e num duplo sentido. Dos três pares em cena, a única relação saudável é a de Noémia (Manuela de Freitas) com Fernando, divorciados um do outro que se juntaram de novo sem reincidirem no sacramento. O duplo sentido do nojo diz respeito ao luto, aquilo que para Vanda atribui qualidades aos maridos mortos que despreza(va) quando vivos, e também à natureza do próprio filme onde, com excepção do casal Noémia/ Fernando ninguém é de confiança, prestando-se quase todos à traição da pessoa com quem estão.
Este filme de Oliveira é também marcado pelo erotismo que vai de par com a frustração (sobretudo na forma de Vanda, sempre descalça e de roupas transparentes, que se nega aos avanços do(s) marido(s), fruto da sua neurose necrófila), e pela sedução de par com o desprezo: neste sentido, a personagem do solteirão Maurício pode assumir-se enquanto versão masculina de Vanda, mas de comportamento inverso, um sedutor que não sabe o que quer e que se farta da mulher conquistada partindo para a conquista seguinte.
A teatralidade assumida pelo filme, uma comédia de costumes em cenário burguês-aristocrático, o tom caricatural na pose e nos diálogos, reforça o carácter terrível dos acontecimentos. Assiste-se a O Passado e o Presente com sorriso gelado porque o seu fundo é trágico e o descaso entre homens e mulheres parece irremediável. É olhar a cena final, por exemplo, com Vanda e Ricardo (o morto que afinal estava vivo, tendo assumido a identidade do gémeo Daniel), chegados com atraso ao casamento de outros, que percorrem sem nexo o corredor central da igreja, não sabendo nós se em busca de lugar onde possam ficar juntos ou que os mantenha separados. É o nojo do luto recuperado enquanto nojo mútuo, e isto é mais terrível ainda.
(visto na Cinemateca)
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