Adolfo Luxúria Canibal é o meu letrista favorito na música portuguesa. No entanto não consigo separar o intérprete das letras que escreve. É impossível dissociar esta dualidade que me parece uma extraordinária transposição do caso Dr. Jeckyll e Mr. Hyde para o universo musical. Luxúria Canibal alimenta o monstro que narra ou que age, com o seu universo de alusões góticas, surreais, sexuais, subversivas ou apocalípticas, cheias de palavras que enchem a boca e vibram de pujança sonora. O que numa voz comum teria impacto relativo ganha um corpo gigante na guturalidade e na dicção marcante do vocalista dos Mão Morta. A expressão corporal contribui para ampliar o que as palavras sugeriam já. Imagens, imagens e mais imagens, cenas suficientemente vagas para fugirem ao facilitismo da correspondência directa (não apenas com a realidade), embora de uma justeza psicológica que aliada à energia das guitarras criam ficções dentro de nós. Não encontro este potencial em nenhum outro projecto nacional, e penso que isso deve-se também à interdisciplinaridade praticada pelos Mão Morta, que reúne nos seus elementos gente com conhecimentos em diferentes linguagens artísticas e escolas de pensamento várias. As palavras das canções valem tanto pelo que sugerem como pelo som que projectam. Ou talvez não. Talvez a importância do som seja o que prevalece, algo que impele a reagir numa zona recôndita em nós, adormecida ou esquecida do anseio por uma qualquer redenção. A música dos Mão Morta faz-nos sentir vivos no momento em que a escutamos, e no mundo actual nenhum outro gesto me parece mais radical que este.
Em repeat:
Ainda chamando a atenção para a edição recente de mais um disco estupendo.